Eu preciso te dizer algumas coisas
já que não te encontro há tanto tempo
preciso te contar dessa maleta
que vim carregando comigo desde
os Oitenta.
Desde os oitenta tenho esta maleta
e não confunda com uma muleta
nela guardo tudo o que dói
e um tanto dói
tenho outras maletas também
mas a hora é para esta.
Nela coloquei algumas roupas
um pedaço do meu braço
unhas. Milhares delas. Livros inúteis.
Meus dentes de criança.
Um áudio de dezenove minutos.
Eu preciso trocar uma ideia com você.
Eu preciso te ver
de maneira simbólica: sua conversa
suspensa na lista de conversas recentes
na lista do WhatsApp.
Preciso ao mesmo tempo
sair dessa conversa
e respirar um ar desconhecido.
Minha câmara de ar desconhecido:
tenho alguns anos nublados em acúmulos
espinhos nos pés
dores que estavam guardadas até
receber este pop-up
de notificação da sua reação
aos meus movimentos.
O que sou eu paralém da figura triste
que você carrega num sticker?
Houve uma época
na floresta
na beira do rio.
Na boca das flores.
Mas o tempo passou e resta Pompéia.
É duro morder as pedras.
É delicado, inclusive, roê-las lentamente.
Meus dentes de adulto já não suportam mais
tanto serrilhar.
Tenho trinta e quase seis.
Perdi a conta de quantos
paraquedas furaram na descida.
Aterriso em meio à clareira à noite.
Você não está lá.
Quem está lá é outra pessoa
que nunca vi antes
e me cumprimenta
e toma as minhas medidas
mas diz não ser para o meu caixão
e não sei até onde acredito.
Talvez para meu paletó final.
Talvez para a minha cabeça de sangue.
Dôo o nome.
Colado à pedra dou meu nome.
Adesivado de nicotina o nome.
Enrolado o tabaco o nome.
Roída a pedra o nome.
Trincado o peito o nome.
Incondicional pausa no nome.
Silábico o nome. Acentuado.
Ao usar meu nome uso um dispositivo
que aciona semáforos, faróis,
não sei mais em qual época da vida me encontro,
não sei mais em qual cidade moro,
se estou em Goiânia ou São Carlos SP,
se moro numa kitnet ou na outra,
se meus amigos são os amigos ou outros amigos,
se meus dentes são de criança ou adulto,
se meu coração ainda é um coração,
se moro na floresta ou se a floresta mora em mim,
cumprimento alligators, telefonam-me
meu parentesco com répteis está no meu rg,
nasço de um ovo, minha mãe chora.
Nasço de novo, minha maleta não vai embora.
Nasço de novo, minha maleta vai à escola.
Encontra outras maletas
e nem todas são tristes. Troca roupas.
Troca livros inúteis por.
Descostura.
Perde o pedaço do braço e volta para casa
com uma perna de outra.
Calça novos sapatos.
Não me reconhece mais.
Bate a porta quando entra no quarto.
É terça-feira. Acordo cedo.
Encontro um bilhete.
Alguém me deu uma mochila
e um copo com café.
Minha vida nunca mais será a mesma.
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